segunda-feira, 16 de abril de 2012

Meditações cartesianas

Dizem que nasci. Não me lembro do fato em questão. Se não me lembro do fato será mesmo que nasci?  Afinal se, cartesianamente, sou o critério universal da verdade como posso ter certeza de ter nascido se não me lembro sequer para duvidar do fato que nasci.
Tá bom! Não me lembro de ter nascido, portanto talvez seja eu apenas a lembrança de um gênio maligno que me fez no mundo só para se divertir.
No entanto me lembro de muitas coisas. Lembro-me claramente do dia em que a Arte morreu.
Eu vi! Eu tava lá. Não duvido nem por um instante daquilo que eu vi com esses zoios que a terra havéra de cumê. Foi na mesma tarde erma e de raros ventos na qual Cacaso enrabou a cabritinha, mas isso não vem ao caso. O caso é que a Arte morreu e eu tava lá pra me lembrar do fato, apesar de não me lembrar de ter nascido para poder lembrar.
Estávamos todos sentados em uma roda a cantar e a brincar quando chegou a boa professora com seus saltos altos, meias finas e vestido de seda estampada. Chegou com sua fala mansa.  No começo ela até que tentou entrar na roda. Mas era visível seu incomodo. O Salto, a meia e o vestido atrapalhavam um pouco. Mas o que atrapalhava mesmo era sua falta de percepção dos ritmos. Ela atravessava o samba, não lembrava o enredo. (Será que ela se lembrava de ter nascido?).
Foi então que naquela tarde erma e de raros ventos em que Cacaso enrabou a cabritinha que a professorinha resolveu tomar conta do jogo e mudar as regras.
Sua decisão não foi um ato isolado, foi amplamente discutida na reunião pedagógica com a orientadora educacional, a coordenação pedagógica e a direção da escola, depois que nossa professorinha se queixou de estar perdendo o comando da turma. Afinal nós só queríamos brincar, disse ela em tom lamentoso. A sábia orientadora pedagógica, doutora em psicopedagogia, logo recomendou o remédio: domina seu aluno quem domina seu corpo. Coloque-os sentados em fila com a espinha ereta, olhando para a nuca do colega. Assuma a frente da sala e fale sempre com voz firme. Os professores admirados de tanta sabedoria balançavam a cabeça em silente concordância, enquanto preenchiam mais um formulário de planejamento.
Naquela erma tarde de raros ventos na qual Cacaso enrabou a cabritinha, a professorinha, que nunca duvidou de ter nascido, apesar de também não se lembrar do fato, escolheu seu melhor salto de melhor couro envernizado, suas meias finas de suave pressão para evitar varizes, seu vestido de seda estampada e marchou determinada a tomar as rédeas de sua turma. Afinal eles já estavam crescidos e precisavam aprender as regras da vida, que não é brincadeira não!
Naquela tarde erma e de raros ventos, ouvindo ao longe os berros da cabritinha, estranhamos a sala modificada.  No lugar de nossa roda pintada no chão agora haviam carteiras enfileiradas uma atrás da outra. Logo chegou a professorinha chegou, postou-se em frente à turma e começou seu discurso sem ritmo e sem cadência, mas prenhe de eloquências:
- Vocês agora já são grandes. Já são quase adultos, não estão aqui para brincar. Precisam aprender... Precisam aprender que a vida não é brincadeira...
O discurso prosseguiu por mais uma hora antes da professora com seus saltos, meias finas e vestido de seda começasse a escrever a lição na lousa. Confesso que não me lembro de que mais ela falou naquela hora, hora e meia... Nem tão pouco da lição que ela nos ensinou.  Também pudera, senão me lembro sequer que nasci, como posso lembrar do resto que vivi!